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Moela, dobradinha e outros miúdos ganham espaço em mesas requintadas

Roberta Malta

Do UOL, em São Paulo

23/04/2014 15h31

Até pouco tempo, fígado era ingrediente de papinha de bebê. Dobradinha e língua, pratos fora do circuito gastronômico e coração de galinha só no churrasco do fim de semana. Nenhum restaurante mais sofisticado servia miúdos, itens pouco atrativos para o público.

Mas esse cenário mudou. Chefs de casas badaladas estão provando que esses cortes são repletos de sabor e podem ficar tão gostosos quanto qualquer outro prato.

“O negócio é saber fazer”, diz Jefferson Rueda, do Attimo, em São Paulo. Segundo ele, não é qualquer um que tem essa habilidade. “Eu tenho porque eu gosto e cresci comendo miúdos.”

Jefferson explica que essas carnes dão trabalho e precisam de atenção especial na hora do preparo. “A moela que uso para fazer ragu demora três horas para ficar limpa”, afirma. Ou seja, para fazer este trabalho, precisa ter estômago. “O rim deve ficar de molho no leite para eliminar o odor e no caso do fígado, precisa retirar toda a pele”, diz.

Isso sem falar na dobradinha. “O cheiro que ela deixa no ambiente enquanto está sendo cozida é fortíssimo”, diz. Para prepará-la, Jefferson limpa a peça completamente, depois lava com limão e aferventa com fubá.

Sua mulher Janaína Rueda, do Bar da Dona Onça, garante que fica bom. “Eu não comia de jeito nenhum. Até que o Jefferson preparou para mim em formato de nuggets”, diz. O salgadinho fez tanto sucesso que entrou para o menu de seu bar e já virou ícone da casa. “Mas no começo as pessoas não pediam muito”, conta.

A chef passou a oferecer o quitute como cortesia sem contar de que era feito o recheio. Pegou. “Hoje, todo mundo adora.” E ela também. Não precisa nem mais disfarçar seu sabor com paio e feijão branco cremoso, como no petisco.

Fã-Clube
Para o casal, o preconceito com esses itens ainda existe. “Eu mesmo não como em qualquer lugar porque não sei como é preparado”, revela Jefferson. Mas o chef afirma que quando o público atesta sua qualidade, não quer outra coisa. “O fígado que sirvo no almoço executivo, às sextas-feiras no Attimo, tem até fã-clube”, diz Rueda, que ainda tem em seu cardápio língua ao molho Marsala, bolinho de miolo com espinafre e a tal da dobradinha.

Além de saber fazer, é importante também caprichar na apresentação e usar produtos bem frescos. Diogo Silveira, do paulistano MoDi, recebe ingredientes dia sim, dia não e serve um prato desse tipo por semana, como moela de pato e fígado de vitela.

No fim de semana, faz rabada com polenta e agrião. “Como não tem tanta saída, não posso ter todos ao mesmo tempo no cardápio”, diz. “Isso porque depois de dois dias, o ingrediente já adquire um cheiro forte e perde em textura”, completa.

Em pouco tempo de casa, ele já pôde notar que quem gosta de miúdos e afins não mede esforços para comê-los. “Muita gente vem de longe porque sabe que aqui tem esses itens”, diz. “E o melhor: volta”.

Marcelo Corrêa Bastos, do Jiquitaia, em São Paulo, percebe também que o interesse pelo seu cozido de língua é crescente. “Quando botei no cardápio, vendi um”, diz. Hoje, chega a servir 20 porções, principalmente nos dias de calor mais ameno.

No carioca Volta, a língua com creme de espinafre é um dos pratos mais pedidos da casa. Os paulistanos Pirajá e Tasca da Esquina servem, respectivamente, rosbife de língua e moelas fritas com cebolinha. No cardápio executivo do Bravin, também em São Paulo, tem salada de coração de galinha, arroz de moela, miolo à milanesa e língua com purê de batata. “Gosto de resgatar hábitos antigos”, diz Daniela Bravin, a dona do salão.

Questão de hábito
Esses ingredientes, na verdade, nunca foram excluídos da alimentação popular. Como custam pouco, são bastante consumidos e fazem parte do dia a dia de restaurantes baratos. A questão é: como eles viraram itens gastronômicos?

O sociólogo Carlos Alberto Dória aposta na crise da gastronomia, resultado da estagnação da inovação técnica. “Tem que haver sempre uma novidade no mercado”, diz. Ele compara a absorção de moelas e afins nos cardápios com a formiga, que aparece na cena atual como iguaria. “Penetrar nos animais é um caminho, assim como penetraram nas florestas”, completa.

Janaína Rueda acredita que esses pratos sofreram revés com a entrada da mulher no mercado de trabalho. “Nossas avós faziam. Mas nossas mães, não mais.”

Aqui, volta a história de que essas são receitas trabalhosas e, como o tempo de cozinhar em casa foi reduzido, pratos mais práticos ditaram o cardápio de toda uma geração. “Comer essas coisas é questão de hábito.” Se depender de Janaína, os mais novos não terão mais essa lacuna no paladar.