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Para chefs, restaurante da novela das 9 não retrata a gastronomia

Roberta Malta

do UOL, em São Paulo

03/09/2014 07h00

Muito já se falou sobre a glamourização da profissão de chef. Pencas de jovens ingressam nas (caras) faculdades de gastronomia achando que vão se tornar celebridades, apresentar programas de televisão e passar o dia fazendo fotos com fãs ardorosos.

O trabalho para desconstruir essa imagem não é fácil. Cozinheiros influentes do mundo todo não se cansam de repetir, em palestras e entrevistas, que a rotina deles é muito mais pesada do que se possa imaginar, as contas no fim do mês muitas vezes não fecham e que ninguém se forma chef e sim cozinheiro – assim como é impossível sair de um curso de administração como diretor geral de uma empresa.

A maior prova de que essa profissão está na moda é o fato de, de uns tempos para cá, toda telenovela ter um personagem, relativamente importante na trama, que exerce esse ofício. O último é Enrico Bolgari, da novela "Império", de Aguinaldo Silva, cujo restaurante é o mais badalado da cidade.

A princípio, o personagem vivido pelo ator Joaquim Lopes é muito mais restaurateur do que chef, já que não usa uniforme e mais passeia no salão do que qualquer outra coisa. O papel se confunde quando ele entra na cozinha para destratar os funcionários, exige rigor na execução de suas receitas e clamar por sua autoria.

“É exatamente esse o protótipo do adolescente que tem dinheiro e vai fazer faculdade de gastronomia”, diz Bárbara Verzola, do capixaba Soeta. “Eles acham que vão dar ordens, cumprimentar clientes e que nunca irão botar a mão na massa.” No primeiro ano do Soeta, ela e seu sócio Pablo Pavon, não raro, terminavam as noites lavando a louça e o chão da cozinha.

“Temos que estar lá justamente para cobrir o que está faltando. Se o funcionário que lava a louça não aparece, não vou desmontar minha equipe para ocupar essa vaga”, diz Bella Masano, do paulistano Amadeus. “Quem vai para a pia sou eu!”

E tem mais. “O grande problema de a novela retratar esse tipo de comportamento é causar uma grande confusão na cabeça dos que estão entrando na profissão”, diz Bella, que chega ao trabalho por volta das dez da manhã e só vai embora quando a casa fecha – cerca de uma da manhã, nos fins de semana.

Desserviço à gastronomia
“O chef aqui sou eu” ou coisa que o valha é frase comum no script do personagem de Joaquim Lopes. Sua grande bronca é com o subchef que, ao que tudo indica, tem mais talento e criatividade do que ele. O rapaz chegou a ser demitido quando recriou uma receita de frango com quiabo – prato considerado pelo chefão indigno de seu Enrico Ristorante, por ser simplório demais.

Aí o perigo é ainda maior. “Estamos vivendo um momento de valorização do produto nacional, lutando por isso”, diz Manoella Buffara, do curitibano Restaurante Manu. “A novela retratar esse tipo de preconceito é um desserviço”, diz a chef. “Hoje em dia, um quiabo tem tanto valor quanto um foie gras [fígado de pato considerado iguaria]”, completa Bárbara. “Isso mostra que o cara não tem ideia do que está acontecendo no mundo da gastronomia.”

Tudo bem que, na telinha, o prato teve total aprovação dos clientes, apesar de o chef ter torcido o nariz e proibido a intervenção dos cozinheiros em suas receitas – outro equívoco. No Amadeus, as sugestões do dia são sempre criação da equipe em parceria com a chef. “Vivo dizendo para os meus funcionários que quanto mais cabeças pensando melhor”,  concorda Flávio Miyamura, do paulistano Miya.

Ele é outro que chega ao restaurante às dez da manhã e não sai antes da uma. Chegando em casa, nada de tomar banho e pular na cama. “Tenho que ficar acordado até as três, que é a hora que ligo para o meu fornecedor de peixes para saber o que tem de mais fresco e fazer o pedido do dia”, conta.

Sempre haverá broncas na cozinha. “Mas essa coisa de ser estúpido com funcionário ficou nos anos 50”, diz Bárbara. “De fato, não temos muito tempo de pedir ‘por favor’ por conta da correria que o trabalho exige”, diz Flávio. “Mas no fim do expediente, sempre sentamos juntos para tomar uma cerveja.” Com Enrico é diferente e mesmo assim seu restaurante é um sucesso. “Só porque é novela”, diz Bárbara. “Duvido que esse restaurante desse certo na vida real.”