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Sangue na panela: pratos típicos que usam o ingrediente podem desaparecer

Galinha ao molho de Rio Pardo e polenta do restaurante Attimo, em São Paulo - Danilo Verpa/Folhapress
Galinha ao molho de Rio Pardo e polenta do restaurante Attimo, em São Paulo Imagem: Danilo Verpa/Folhapress

Roberta Malta

Do UOL, em São Paulo

13/01/2015 17h58

Cinco anos atrás, Jefferson Rueda, à época chef do Pomodori, em São Paulo, incluiu no menu degustação da casa um prato que é a cara do Brasil: galinha ao molho pardo (ou à cabidela). Quem provou nunca esqueceu o caldo escuro e grosso feito do próprio sangue da ave, que a deixava suculenta e mais saborosa do que se possa imaginar.

Assim, quando desenhou o cardápio de seu Attimo, inaugurado duas primaveras depois, também em São Paulo, decidiu incluir a receita nas opções à la carte da casa. A imprensa noticiou sua intenção e não demorou para o recadinho chegar à construção de paredes claras, na Vila Nova Conceição.

“É abrir e eu fecho”, mandou avisar a responsável pela vigilância sanitária de São Paulo – ironicamente conhecida como a “capital nacional da gastronomia”. Jefferson tentou driblar a intimação e sua nutricionista passou a colher amostras do sangue de cada galinha abatida e mandar para o laboratório a fim de (tentar) legalizar a venda do prato. “Acontece que cada laudo demorava de 15 a 20 dias para ficar pronto”, conta o chef. Tiro n’água. Quem, afinal, encomenda um prato, em um restaurante, com essa antecedência toda? 

Jefferson bateu o pé. Modificou a receita e passou a servir “Galinha ao molho do Rio Pardo” – referência à cidade onde nasceu e, ainda criança, aprendeu a sangrar animais. “Uso chouriço [tipo de linguiça feita com sangue de porco] comprado pronto para mimetizar o líquido das veias da ave”, explica. 

Nem por isso o chef sossegou. Danado com a possibilidade de ver um prato tão tradicional da culinária brasileira desaparecer das mesas e da memória nacional, resolveu abraçar a causa.

No palco do congresso Mesa Tendências, o maior da América Latina, promovido pela revista Prazeres da Mesa, em novembro passado, Rueda mostrou como matar uma galinha e usar o tal ingrediente. “Tem que cortar o pescoço dela, deixar o sangue escorrer e imediatamente batê-lo com vinagre para não coagular”, diz.

Estava lançada a campanha “Sangue é ingrediente”, hashtag postada mais de uma centena de vezes nas redes sociais, por cozinheiros e comilões de diversas partes do globo.

Sua mulher, Janaína Rueda, chef do paulistano Bar da Dona Onça, foi quem comprou a briga e começou a postar fotos de pratos com sangue com a hashtag que já correu o mundo. “Várias pessoas mandam receitas tagueadas para nós, um alcance que a gente nem imaginava que poderia ter”, diz. Animada, a chef começou a  pesquisar profundamente o assunto. “Cheguei a ficar horas na internet procurando indícios de que o sangue de um animal tinha matado alguém”, diz.

Tal seria. “Fosse assim ninguém comeria bife mal passado”, diz Mônica Rangel, do Gosto com Gosto, em Visconde de Mauá, no Rio de Janeiro, que considera a proibição absurda. “O sangue está impregnado na peça, vão vetar o consumo de carne também?” 

Chefs Janaína Rueda (à esq) e Jefferson Rueda, levantam a bandeira da campanha "Sangue é ingrediente" - Divulgação / Leticia Moreira/Folha de S. Paulo - Divulgação / Leticia Moreira/Folha de S. Paulo
Chefs Janaína Rueda (à esq) e Jefferson Rueda, levantam a bandeira da campanha "Sangue é ingrediente"
Imagem: Divulgação / Leticia Moreira/Folha de S. Paulo

Ana Luiza Trajano, do Brasil a Gosto, em São Paulo, que aprendeu a matar aves aos dez anos de idade e viajou o país inteiro pesquisando receitas, costumes e ingredientes, é outra que faz coro com o casal Rueda. “No Brasil inteiro se usa sangue”, afirma. De porco, de boi, de frango. “Sarapatel, galinha à cabidela, chouriço, todos estes pratos são preparados com esse ingrediente.” O sertão pernambucano e o interior do Rio Grande do Norte fazem até um doce, armazenado em latas de achocolatado, que leva sangue, canela e gergelim. E aqui não pode.

“A cozinha não quer abrir mão disso”, diz Bella Masano, do Amadeus, também em São Paulo. “Nem do ponto de vista do sabor e muito menos do cultural”, completa.

E os argumentos não param por aí. “Dá para defender o sangue de diversas maneiras”, diz Rodrigo Oliveira do Mocotó e do Esquina Mocotó, ambos em São Paulo. “Mas prefiro só dizer o básico: primeiro, trata-se de um ingrediente riquíssimo em nutrientes e culturalmente sedimentado. Depois, é gostoso demais!”. 

Do que se trata a lei
Verdade é que a tal proibição da vigilância sanitária não crava que não se pode usar o sangue na cozinha. Mas que seu uso deve ter origem comprovada e não pode ser transportado. Assim, só é possível servir, por exemplo, um frango ao molho pardo, se o restaurante estiver instalado em zona industrial e funcionar dentro de um frigorífico.

“Qual o problema de levar o sangue de um lugar para outro, se bem acondicionado? Fazemos o mesmo com queijos. Não seria igual em casos de hemodiálise?”, provoca Janaína. 

Gastronomia: preparação do frango ao molho pardo do restaurante Maria das Tranças, no bairro São Francisco, em Belo Horizonte (MG) - Pedro Silveira/Folhapress - Pedro Silveira/Folhapress
Preparação do frango ao molho pardo do restaurante Maria das Tranças, em Belo Horizonte
Imagem: Pedro Silveira/Folhapress

A questão é justamente essa: a venda do sangue não é regulamentada porque o Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária dos Produtos de Origem Animal (Rispoa), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento não tem regras para guardar e transportar o ingrediente.

“No nível federal, da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], não há nenhuma norma que regule o uso de sangue como ingrediente, nem proibindo, nem permitindo”, diz Carlos Augusto Moura, assessor de imprensa do órgão federal.

Sua sugestão de falar com a Vigilância Sanitária do Estado de São Paulo foi frustada-- a Vigilância Sanitária alegou que assunto dizia respeito à Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo e Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e este órgão informou à reportagem que a questão deve ser esclarecida pela Vigilância Sanitária. 

Em Belo Horizonte, Minas Gerais, o restaurante Maria das Tranças, serve cerca de mil aves à cabidela por mês. Só que fica dentro de um frigorífico que abriga ainda um matadouro. “É lindo de ver a tecnologia com que eles trabalham”, diz Janaína.

Além do bufê montado no enorme salão, os clientes levam panelas e compram o prato para viagem, há quase 70 anos. O enorme fogão de 30 bocas, cada qual com um frigideira sobre a chama, faz a receita à perfeição. “Cada panela tem uma galinha, é tudo separado e controlado com imenso rigor”, conta a chef. A fila na porta, de gente babando por uma boa cabidela, segundo ela, é grande.

Mas deixa estar. Janaína e Jefferson garantem que não vão parar de lutar, até conseguirem recuperar o que há de mais caro para um povo: a cultura, maior bem imaterial que pode existir. Para isso pedem a todos os interessados em preservar a cultura culinária do país que compartilhem fotos e receitas de pratos com a hashtag #sanguéingrediente. Vai fazer isso ou se contentar com a carne branca e petrificada vendida em bandejas de isopor? Pensa bem.