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Especialistas tentam entender por que hoje se fala tanto em comida

Fernanda Meneguetti

Do UOL, em São Paulo

10/03/2015 07h00

Pilhas de livros de receitas publicadas, inúmeros reality shows com chefs de cozinha, chefs de cozinha reverenciados como gurus, restaurantes considerados templos, fotos de comidas endeusadas com milhares de curtidas nas redes sociais, pratos sendo alvo de todo tipo de conversa. A gastronomia virou religião e não para de despertar paixões fervorosas, nem de alimentar estômagos e egos. Aqui, chefs, estudiosos e restaurateurs discutem por que se fala tanto dela atualmente.

“Quando as grandes empresas começaram a usar chefs para avalizar produtos, nos anos 1970 e 1980, a profissão ganhou notoriedade. E isso só aumentou. Surgiram milhares de programas de TV, houve uma evolução do ato de comer e uma enorme dissipação de conhecimento. Todos se põem a viajar, descobrem novos ingredientes e técnicas e, à mesa, passam a se entreter com a comida e não com os comensais”, comenta o restaurateur Janjão Garcia, fundador do Garcia & Rodrigues, hoje à frente do Lorenzo Bistrô e da Casa Carandaí, no Rio de Janeiro.

Ambiente do Fasano, restaurante símbolo da alta gastronomia, em São Paulo - Divulgação - Divulgação
Ambiente do Fasano, restaurante símbolo da alta gastronomia, em São Paulo
Imagem: Divulgação

Rogério Fasano, sócio e dirigente do Grupo Fasano, com restaurantes e hotéis em São Paulo e no Rio, costuma dizer que pra quem vem de uma família Italiana, falar de comida vem antes de qualquer outra coisa – sexo, futebol, religião... E logo emenda: “A gastronomia hoje é assunto muito mais do que no passado e é muito menos comercial. A chamada cozinha internacional perdeu espaço para as cozinhas que de fato representam a história, a cultura, as regiões da pessoa responsável, seja ela o chef ou o restaurateur”.

Paradoxalmente, falar e mostrar o que se come é cada vez mais autopromoção: “O exibicionismo em torno da comida tornou-se tão sofisticado quanto no mundo do vinho. Se o indivíduo nunca provou um beluga iraniano ou não conhece o ‘frekeh’, o grão da moda, ou ainda não foi ao restaurante dos irmãos Roca, é considerado um fracasso social”, reflete a food designer criadora do projeto transdisciplinar Como Penso Como, Simone Mattar.

O Sonho Real, com bacalhau, é uma peça de Simone Mattar sobre o glamour da corte real brasileira - Gege Portioli/Divulgação - Gege Portioli/Divulgação
O Sonho Real, com bacalhau, é uma peça de Simone Mattar sobre o glamour da corte real brasileira
Imagem: Gege Portioli/Divulgação

A enxurrada de imagens de receitas no facebook e no instagram traduz a necessidade aflita de se mostrar, como no Big Brother, ao mesmo tempo que revela o desejo de pertencer a um grupo social. Nesse sentido, o fato da comida reunir as pessoas se torna um ótimo pretexto. “Os grupos podem ser mais ou menos fundamentalistas – os vegetarianos, os veganos, os que cultuam o corpo e consomem alimentos super protéicos, os hypes, os junkies, os que buscam comidas autênticas nos locais de suas origens –, mas prefiro imaginar que haverá um bom senso coletivo com soluções para a sustentabilidade mundial, a saúde corporal e da alma”, complementa Mattar.

Se a indústria da moda sempre dependeu do estímulo contínuo às mudanças dos gostos, a da comida segue seus passos: “Hoje é ‘in’ conhecer comida e vinho”, destaca o chef Paulo Barros, idealizador do Grupo Egeu (Italy, Kaá e General Prime Burger) e dos raros cozinheiros famosos na capital paulista que não posta fotos para alimentar o mar de foodies, “cada vez mais parecidos com os ‘enochatos’”.

No prato, crocante de batata doce e olhete expressam emoções da chef Manu Buffara - Divulgação - Divulgação
No prato, crocante de batata doce e olhete expressam emoções da chef Manu Buffara
Imagem: Divulgação

Mas seria ingênuo e injusto não assumir a sedução natural da comida, a que se dá pela habilidade do preparo, da escolha dos ingredientes, da criação de sabores e perfumes – do bolo quentinho das casas de avó às construções minimalistas com crustáceos crus e picles intensos de restaurantes premiados. É disso que fala Manu Buffara, ex-jornalista curitibana à frente do Restaurante Manu: “Quando comemos há um resgate de memórias. Se como a comida da minha avó, lembro da infância, das emoções que senti. Hoje o mais importante em um restaurante é passar emoções por meio do menu. Muita gente posta foto antes mesmo de comer, apenas porque o prato é bonito. Mas ser foodie não é simplesmente postar, é aquela pessoa que gosta de viajar e comer bem, que se interessa por comida, que curte divulgar a experiência em restaurantes sofisticados e simples, não importa o preço que se pague”.