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Mulheres criam movimento contra o machismo no meio cervejeiro

Integrantes do coletivo cervejeiro de mulheres E.L.A. - Divulgação
Integrantes do coletivo cervejeiro de mulheres E.L.A. Imagem: Divulgação

Rodrigo Casarin

Colaboração para o UOL, em São Paulo

22/07/2016 18h34

Quando Fernanda Fregonesi, biomédica e responsável pelo projeto Yeast Facts, começou a dar aulas sobre leveduras para cervejeiros, era comum ouvir coisas desagradáveis como 'Você só lotou uma turma de alunos porque todo mundo quer transar com você' ou 'Professora, por que você não dá aula de jaleco? Ia ficar mais linda, e você sabe que sexo vende'.

Também sentiu-se um objeto quando um aluno, aproveitando que Fernanda estava de shorts, tirou uma foto de seu traseiro durante uma aula em São Paulo e colocou em um grupo de WhatsApp. Ela nunca soube quem foi o responsável, mas descobriu que os outros homens do grupo – e eram mais de 150 – acobertaram o assediador. Só teve conhecimento da imagem alguns anos depois, quando uma colega se lembrou da história e relatou o caso.

Cansadas de situações do tipo, um grupo de 65 profissionais que atuam no mercado de cervejas artesanais resolveu criar o E.L.A. (Empoderar. Libertar. Agir.), movimento que nasce justamente para combater o machismo nesse meio. São mestres cervejeiras, sommelières, professoras, apreciadoras e empresárias de diversos estados do país, como Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, que se juntaram e iniciaram uma campanha pela internet, com direito a páginas no Facebook, Tumblr e Instagram.

Fernanda conta que o assédio vai além do relatado acima. “No meu e-mail profissional já recebi fotos de ex-alunos pelados, elogios tendenciosos e mais um monte de objetificações e inferiorizações, como se minha experiência de três anos no meio, e minha formação acadêmica, fossem piadas perto do que outros homens afirmam ser, sem a menor noção do que estão falando”, diz.

“Cerveja de mulher”
No entanto, nem sempre o machismo se manifesta em situações descaradas de assédio. Sair com um homem e ver sua cerveja sendo servida para ele, propagandas que tratam a mulher como objeto sexual ou ouvir coisas do tipo “mulher não deve ir ao bar sozinha”, “quero falar com o cervejeiro responsável” ou “olha, temos tal cerveja, que é para mulher” também são coisas que as moças que curtem a bebida têm que aturar por aí.

Taiga Cazarine, gerente e sommelière de cervejas do São Paulo Tap House, acredita que é preciso ficar atento ao significado das pequenas frases ditas no dia a dia. “Existem situações em que homens deixam claro a decepção em ver que 'o cara' que entende de cervejas da casa é, na verdade, uma mulher. Alguns provocam com perguntas para ter certeza que eu sei o que estou fazendo”, diz. “É muito comum frases como: quero uma cerveja de mulher hoje, o que você me indica? E nessa eu sempre respondo: tenho todas, você está a fim de qual exatamente?”

Taiga Cazarine nota a decepção dos homens em ver que 'o cara' que entende de cervejas da casa é uma mulher - Divulgação - Divulgação
Taiga Cazarine revela que nota decepção dos homens ao notar que 'o cara' que entende de cervejas da casa é uma mulher
Imagem: Divulgação

 Já Amanda Henriques, jornalista e sommelière de cervejas, lembra de situações que já vivenciou por conta do blog Maria Cevada, do qual é editora. No início do projeto era comum passar por algo que chama de “tradução simultânea”: ao entrevistar cervejeiros, eles automaticamente redirecionavam as respostas a Anderson, namorado da moça e também editor da página.

Em outra ocasião, viu gente na internet cogitando que seu canal no YouTube fosse uma ação de alguma marca específica apresentada por um “rostinho bonito”. “Ainda existe esse tipo dificuldade de aceitar que uma mulher pode entender - e muito - de cerveja”, diz.

American Barley Wine feita por elas
Para marcar o nascimento do E.L.A., o coletivo também produziu uma cerveja exclusiva, a American Barley Wine de amargor acentuado e 10% de teor alcoólico, perfil diametralmente oposto ao estereótipo da “cerveja de mulher, leve e docinha”.

Na fabricação da fermentada, que aconteceu na Cervejaria Dádiva, em Várzea Paulista, interior de São Paulo, coube a parte das integrantes do coletivo executar todo o processo, desde a desinfecção dos equipamentos até a retirada do malte. O rótulo deverá chegar às prateleiras ainda este semestre e todo o lucro será revertido para entidades que acolhem mulheres vítimas de violência.

Para Júlia Reis, o movimento não é de um contra o outro, e sim para criar ambiente igualitário para todos - Divulgação - Divulgação
Para Júlia Reis, o E.L.A. busca criar ambiente e mercado igualitário para homens e mulheres
Imagem: Divulgação

Uma das integrantes do movimento que estava na brassagem era Julia Reis, sommelière e cervejeira caseira, sócia da Sinnatrah Cervejaria Escola e consultora para marcas. Única mulher entre os sócios da loja de artigos cervejeiros, já chegou a escutar que a vantagem da mulher fazer cerveja em casa é que ela já faz a faxina dos equipamentos.

Em outra oportunidade, recebeu o convite para que sua confraria de degustações formada exclusivamente por mulheres – as Maltemoiselles – participasse de um evento cervejeiro entregando folhetos e recebendo as pessoas na porta, deixando as palestras e o conteúdo para os homens.

“O tempo todo sinto que tentam colocar as mulheres envolvidas com cerveja no lugar onde é confortável: no lar, como hostess, corpinho bonito à mostra na publicidade. Os outros papéis desempenhados por nós ainda geram desconforto em algumas pessoas", diz Julia. "É preciso entender que o movimento não é de um contra o outro, é para criar um ambiente e um mercado igualitário para todos."