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Por que este especialista diz que a 'culinária mineira é um mito'

Construção de "mineiridade" - o que inclui sua vertente culinária - foi patrocinada pelo governo de Minas e contou com participação de intelectuais - Prefeitura de Belo Horizonte
Construção de 'mineiridade' - o que inclui sua vertente culinária - foi patrocinada pelo governo de Minas e contou com participação de intelectuais Imagem: Prefeitura de Belo Horizonte

João Fellet - @joaofellet - Da BBC News Brasil em São Paulo

08/12/2018 09h27

Em entrevista à BBC News Brasil, sociólogo Carlos Alberto Dória afirma que cozinha caipira, criada a partir de ingredientes e técnicas indígenas, sustentou ocupação de uma ampla região do Brasil, mas acabou 'apropriada' por Minas Gerais; tese integra livro recém-publicado sobre origens da tradição culinária.
 

Anos atrás, o sociólogo Carlos Alberto Dória caminhava por Taubaté, cidade paulista próxima à divisa com Minas Gerais, quando topou com restaurantes que diziam oferecer "comida mineira". O fato chamou sua atenção, pois, segundo ele, a cozinha tradicional de Taubaté - e a de todo o interior paulista - é a mesma que a de Minas Gerais.

"Fiquei intrigado: como Minas se apropriou dessa cozinha?", ele questiona em entrevista à BBC News Brasil.

A pergunta o levou a mergulhar nas origens da culinária que se criou naquela parte do Brasil - e resultou no livro "A culinária caipira da Paulistânia" (ed. Três Estrelas), publicado em outubro em parceria com o chef paranaense radicado em São Paulo Marcelo Corrêa Bastos.

Na obra, Dória e Bastos defendem que uma mesma cozinha caipira, criada principalmente a partir de técnicas e ingredientes de três etnias guaranis, espalhou-se pelo que hoje são os Estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina, parte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, além da região das Missões, no Rio Grande do Sul - onde os guaranis inventaram o churrasco, aproveitando carcaças abandonadas por vendedores de couro. Hoje, grupos dessas três etnias (nhandeva, mbya e kaiowá) seguem espalhados por partes de seu território original, mas estão confinados em reservas superpovoadas ou em acampamentos à beira de estradas.

Combatendo a ideia de que cada um desses Estados tenha uma culinária típica e singular, eles optam por agrupá-los num território que chamam de Paulistânia - termo usado no passado para nomear a área que os bandeirantes, partindo de São Paulo, percorreram nos primeiros séculos da colonização. Para sustentar a tese, baseiam-se numa extensa pesquisa de receitas tradicionais de todos os Estados abarcados, cujas culinárias "apresentam contantes tão notáveis que só podem ser tomadas como traços de uma mesma história".

Foi essa cozinha, amparada em variadas técnicas de conservação e nascida em sítios onde se praticava uma agricultura de subsistência, que sustentou as marchas para escravizar índios e ocupar as terras do Brasil central, triplicando o território reservado a Portugal pelo Tratado de Tordesilhas, de 1494. Os pilares dessa culinária eram o milho, o feijão e a abóbora - além das frutas do pomar e de duas espécies de animais trazidas pelos portugueses, o porco e a galinha.

Autor de vários livros sobre gastronomia e doutor pela Unicamp, Dória diz que esses modos de comer entram em declínio a partir do século 19, quando os sitiantes abandonam as roças e se tornam assalariados nas fazendas de café. Paralelamente, o avanço da agroindústria e campanhas sanitaristas vão aniquilando a diversidade da cozinha caipira, relegada ao "solene desprezo que o Brasil devota ao seu passado indígena".

Restaram-lhe ilhas, onde, impulsionada por campanhas turísticas ou por projetos regionalistas, ela sobrevive com outros nomes - caso das ditas cozinhas mineira e goiana, segundo ele.

Já na capital paulista - onde, no século 19, quitandeiras vendiam nas ruas pinhão quente, içá torrada, cuscuz de bagre, amendoim torrado, pamonha e peixe frito -, comidas caipiras foram dando lugar a ingredientes importados, vistos como mais higiênicos e sofisticados por uma população deslumbrada pela modernidade.

Confira os principais trechos da entrevista do sociólogo à BBC News Brasil.

BBC News Brasil - Seu livro diz que a ideia de uma culinária mineira é um mito. Pode explicar?

Carlos Alberto Dória - A partir dos anos 1970, houve um esforço do governo de Minas para criar o mito da mineiridade. Vários intelectuais foram envolvidos, inclusive Carlos Drummond de Andrade. Em contraposição, não existem referências fortes ao passado caipira entre os paulistas e, especialmente, entre os paulistanos. Até porque, quando olhamos para trás, nossos avós (em São Paulo) são italianos, espanhóis, asiáticos.

É como se Minas houvesse se apropriado da memória que se apagou em São Paulo. Houve uma transferência para Minas do conceito de cozinha caipira, que se fundiu e se confundiu com a mineiridade.

Houve também um outro processo. Para o turismo, é fundamental você dizer porque alguém deve ir a um Estado e não a outro, então você tem que enfatizar as diferenças nas culinárias.

Hoje, por exemplo, muita gente acredita que os pratos com pequi são restritos a Goiás. Mas isso se deve à destruição do cerrado, que antes era muito mais extenso. O (naturalista francês) Saint-Hilaire (1779-1853) encontrou pés de pequi perto de Itu (SP), o que não existe há muito tempo.

BBC News Brasil - Esse apagamento da memória culinária em São Paulo se deveu só à imigração?

Dória - Não, isso é algo muito fortemente ideológico. É sobretudo a rejeição de um modo de vida caipira, rural, que não se coaduna com a modernidade que os paulistas atribuem a si próprios, especialmente após a industrialização do país.

BBC News Brasil - O senhor diz que a culinária caipira teve grande influência dos indígenas guaranis. Pode dar exemplos?

Dória - As etnias guaranis estão na base da cozinha caipira. E isso não é reconhecido na história. Estou falando especialmente daquilo que é a base de sua alimentação: o milho, o feijão, a abóbora, o amendoim.

Em segundo lugar, na Paulistânia, há uma presença muito clara da farinha de milho. É algo que era feito pelos índios usando técnicas como o pilão e que, com advento do monjolo, se torna um apoio muito importante para a conquista territorial. É uma farinha já pronta para comer, diferentemente da farinha de trigo, e ela sustenta o internamento no sertão.

Há também uma apropriação dos fogos usados pelos índios. Na cultura caipira tem o que é assado no moquém - um jirau que se põe longe do fogo -, o que é assado sobre pedras ou sobre as brasas, sob as brasas, enterrado embaixo de fogueira... São técnicas de cocção totalmente indígenas e que marcam muito a cultura brasileira.

BBC News Brasil - O senhor também atribui aos guaranis a invenção do churrasco no país. Como isso ocorreu?

Dória - Enquanto no Nordeste o boi tinha um valor econômico muito maior, porque era criado para fornecer tração animal e alimento para os engenhos, no Sul ele só tinha valor para a extração do couro. O churrasco surge do abandono da carne.

Os guaranis se apropriaram da carne que não tinha valor algum, que era o lixo da produção do couro. Essa é a carne que vira o churrasco.

BBC News Brasil - O senhor defende no livro que, além de sua riqueza culinária, os guaranis também eram muito sofisticados no trato com a terra - uma ideia que se contrapõe a teses difundidas ainda hoje e que consideram a agricultura praticada por indígenas brasileiros como menos desenvolvida que a de outros povos e civilizações. Por quê?

Dória - A partir dos anos 1970, vão se avolumando estudos que mostram que esses povos (indígenas brasileiros), aos quais se atribuía uma alimentação baseada na caça e coleta, na verdade desenvolviam formas sofisticadas de interação e manejo da floresta, de modo que esse manejo possa se considerar uma agricultura desenvolvida.

Não são povos que estavam lá atrás e que foram civilizados no contato com os brancos. Ao contrário: eles tinham uma cultura sofisticada de manejo da floresta, e muito disso se perdeu pela colonização. Me impacta muito a questão da chamada seleção artificial inconsciente. Esses povos se apropriavam de frutas da floresta. Você chupa uma jabuticaba, a mais bonita, joga o caroço fora, outro pé nasce, e isso vai transformando a espécie.

Há claras evidências de que uma fruta como o abiu, que normalmente tem entre 70 e 100 gramas, pode alcançar até 900 gramas entre grupos indígenas da Amazônia. Muitas vezes viam-se esses produtos como se fossem naturais, e não frutos do trato humano.

BBC News Brasil - Sagrado para os guaranis e base da cozinha caipira, o milho é hoje uma das principais commodities agrícolas produzidas no país. Ainda assim, o espaço simbólico que a planta ocupa na dieta do brasileiro parece bem menor do que no passado - diferentemente do que ocorre no México, onde o milho também era cultivado por indígenas, mas preservou seu protagonismo na cozinha local. Por quê?

Dória - Imagine um cenário em que haja 3.000 espécies alimentares. Dessas, mais ou menos 30 alimentam 90% da população mundial. A busca do lucro está ligada à racionalização da produção, que está ligada à especialização. Vão predominar as espécies mais prolíficas, de manejo mais fácil, com ciclo mais curto. E isso vai eliminando a diversidade. Há um estrangulamento das formas mais espontâneas e não taylorizadas de produção agrícola.

O milho é uma das espécies mais expressivas na alimentação global hoje. Mas essa produção é também a base de boa parte da indústria de alimentos. A industrialização do milho é o que substitui o milho em suas formas primitivas.

Há também uma substituição do milho por outros produtos, como a mandioca e o arroz, ao passo que em países como o México ou o Peru, o milho resiste mais. Isso tem muito a ver com a identidade, com o orgulho nacional, e no Brasil não é assim, porque o milho não teve essa importância nacional que tem nesses países.

BBC News Brasil - Em que medida a influência portuguesa na culinária brasileira se deve ao que os portugueses absorveram de outros povos nas Grandes Navegações?

Dória - O que os portugueses fazem é conectar o mundo. Muito mais do que ter uma culinária expressiva, que se impõe e se torna hegemônica, eles conectam todos. Tanto trazem frutas para cá como levam para lá milho, mandioca, amendoim.

A culinária portuguesa nos primeiros tempos, assim como as africanas e as indígenas, são de potaria, de coisas cozidas em pote. As técnicas eram muito próximas, embora houvesse uma grande diferença de ingredientes. Mas os portugueses vão trabalhando e diminuindo essa diferença.

BBC News Brasil - Como a mudança no regime de trabalho no campo, quando os sitiantes que viviam de subsistência passam a trabalhar nas fazendas como assalariados, impacta a comida na Paulistânia?

Dória - A lei de terras de 1850 permite aos grandes proprietários registrar terras devolutas, e os pequenos proprietários não tinham recursos para isso. Há uma grande desapropriação dos sitiantes, que ficam como moradores de favor dos grandes proprietários. Quando há a expansão do café, há a proletarização dessa gente. O café avança sobre as terras dos sítios, e esses caipiras vão passando a morar nas fazendas.

Houve aí a destruição da unidade de produção caipira, o sítio - que é uma pequena propriedade onde está empenhada a mão de obra familiar, que gravita em torno do milho e seus derivados, e dos animais que se alimentam do milho - principalmente porcos e galinhas. Também se perdem os frutos do pomar e os temperos da hora, que são basicamente vegetais europeus com funções medicinais.

BBC News Brasil - Quando as hortas deixaram de ser vistas como farmácias e que impacto isso teve no consumo de hortaliças pelos brasileiros?

Dória - Há duas vertentes de aportes de vegetais à cozinha brasileira. O que havia na horta caipira era uma reminiscência da medicina galênica, em que vegetais são pensados a partir de propriedades curativas e capacidades de equilibrar humores do corpo. Coentro, salsinha, erva doce, funcho - todos eles foram trazidos com esse sentido, e acho que isso ainda perdura, de certa forma.

O consumo de hortaliças como conhecemos é algo mais recente, influência de italianos e espanhóis, depois reforçada pela presença de japoneses.

É curioso como isso influencia as identidades. Há no Brasil uma região do coentro e uma da salsinha, e elas não se interpenetram. No norte de Portugal, há o uso da salsinha exclusivamente, e no sul, do coentro. Então de alguma maneira há aqui um espelhamento dessa especialização dos colonizadores.

BBC News Brasil - Por que o senhor diz que os africanos não tiveram tanta influência na culinária caipira?

Dória - O modo de produzir essa agricutura de subsistência prescinde da mão de obra escrava. Havia escravos na Paulistânia ligados a algumas atividades, como a cultura do arroz, mas em pequeno número. Outra coisa é a grande concentração do escravo nas minas.

Mas, quando termina a mineração, esses grupos se dispersam e se acaipiram. O modo de subsistência absorve os negros. Eles não ficam concentrados como em Salvador, onde ganham certa hegemonia cultural.

BBC News Brasil - Quais os traços essenciais que diferenciam a culinária caipira de outras grandes tradições gastronômicas brasileiras?

Dória - No grosso da Paulistânia, faz-se uma culinária de conservação. Há conservas à base de açúcar, por desidratação, à base de álcool, como os licores, e as conservas de carne na banha, na gordura. Essa grande área privilegia a comida em conserva, ao passo que na Amazônia há uma culinária mais imediata, ligada aos rios, à floresta, embora lá também exista a conserva, que é a farinha de mandioca, desidratada.

No Nordeste, há o uso privilegiado da manteiga na conservação e o uso da carne seca, uma técnica de desidratar do povo quéchua (oriundo dos Andes), diferente das europeias. Nos Alpes, a carne é desidratada no vento, ao sol. Aqui tem presença do sal, e isso ocupa toda a América Espanhola. O charque, que é uma palavra quéchua, vem daí.

BBC News Brasil - Como as campanhas sanitaristas afetaram a culinária caipira?

Dória - Com a divulgação da genética do (biólogo austríaco Gregor) Mendel, no começo do século 20, os intelectuais se dão conta de que os ditos "problemas da raça" no Brasil, especialmente o dos negros, não eram genéticos, mas alimentares. Chegaram à conclusão de que tínhamos uma população doente e mal alimentada que desenvolvia vícios como o alcoolismo, e era isso que tínhamos de combater se quiséssemos o desenvolvimento.

A partir de então, há a apropriação do problema dietético pelo Estado. Cito no livro um sistema de normas que impedia em São Paulo a venda de milho verde, porque faria mal. Depois tem o problema sanitário com a banha de porco. Houve uma febre suína nos anos 1930, e isso termina por eliminar a gordura de porco da dieta e por substituí-la por óleos vegetais.

No período mais recente, há a criação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que é a fiscal da qualidade do que se produz. E ela traz uma série de preconceitos, influenciada pelo higienismo americano, como, por exemplo, contra o leite cru.

Há um combate muito grande a um tipo de produção alimentar considerado anti-higiênico ou de risco. Isso vai transformando a alimentação por dentro. Hoje, por pressão de ambientalistas e de pessoas ligadas à ideia de sustentabilidade alimentar e de comida tradicional, há uma recuperação de algumas formas passadas e proscritas por órgãos de vigilância sanitária. Já se pode, por exemplo, reencontrar o queijo canastra, que ficou proscrito por muito tempo.

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