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A briga de gênero por trás da tradicional 'coxinha' da Sicília

Arancini (ou arancine) são bolas de arroz fritas e recheadas com carne ou legumes - Valery Voennyy/Alamy/BBC
Arancini (ou arancine) são bolas de arroz fritas e recheadas com carne ou legumes Imagem: Valery Voennyy/Alamy/BBC

Stefania D'Ignoti

Da BBC Travel

07/07/2019 14h05

Arancino ou arancina? Conhecida por sua textura única e como símbolo de solidariedade, essa icônica e saborosa iguaria é alvo de um polêmico conflito na ilha italiana.

Danilo Festa ficou comovido quando, em um protesto contra as leis anti-imigração da Itália e de boas-vindas a refugiados no ano passado, viu muitos de seus compatriotas chegando ao porto de Catania com arancini, uma bola frita de arroz com recheio salgado que tem um aspecto parecido com o da coxinha brasileira.

"Um grupo de artistas sugeriu que usássemos os arancini como símbolo dos protestos", diz Festa. "Foi um momento feliz que quebrou o clima político de tensão".

O protesto pacífico foi uma demonstração pública de solidariedade para os mais de 100 imigrantes resgatados no mar que estavam a bordo do navio Diciotti em 15 de agosto de 2018. A entrada dos imigrantes foi negada por 10 dias depois que o ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini, disse que era responsabilidade de outros estados europeus recebê-los.

Depois dessa decisão, alguns ativistas decidiram receber os imigrantes com o popular lanche siciliano.

"Arancino é o tipo de comida que você oferece a hóspedes com fome", diz Festa. "Considerando que ele também evoluiu até a forma atual sob muitas civilizações diferentes que conquistaram a Sicília ao longo dos séculos, é também um símbolo de união entre os dois lados do mar".

Conhecida por sua textura única - crocante por fora e mole e salgada por dentro - e sua mensagem de solidariedade, esse icônico prato siciliano surpreendentemente tem sido fonte de conflito na ilha.

Arancino ou arancina?

Ativistas levaram arancini para dar as boas-vindas a imigrantes que foram proibidos de chegar à costa italiana e tiveram que ficar dias no mar até poder desembarcar  - Stefania D'Ignoti/BBC - Stefania D'Ignoti/BBC
Ativistas levaram arancini para dar as boas-vindas a imigrantes que foram proibidos de chegar à costa italiana e tiveram que ficar dias no mar até poder desembarcar
Imagem: Stefania D'Ignoti/BBC

Uma das principais razões por trás da fama dessa iguaria - geralmente servida em bares ou banquinhas de rua, enroladas em um guardanapo para levar - é o enorme dilema de gênero que tem apresentado a sicilianos por décadas.

Enquanto os que vivem na parte oriental da ilha usam o nome masculino arancino (arancini no plural), os moradores do lado ocidental da ilha defendem a forma feminina, arancina (arancine no plural), quando se refere ao salgado.

A discussão é tão acalorada que até mesmo a estilista italiana Chiara Ferragni foi repreendida por preferir um gênero em detrimento de outro.

"A briga traduz a competição entre as duas maiores cidades da Sicília, Catânia e Palermo, que escolheu esse debate culinário como campo de batalha para sua hegemonia cultural sobre a ilha", diz o especialista em cozinha siciliana Gaetano Basile.

Segundo Basile, o formato da 'coxinha' local faz com que ela se pareça uma laranja amarga - uma fruta importada pelos árabes entre os séculos 9 e 11 - que, no dialeto local, leva o nome de arànciu (os nomes masculinos tipicamente terminam em 'u' no dialeto siciliano), por isso o nome arancinu (laranja pequena e amarga). O nome então foi 'italianizado' para 'arancino' depois que a Itália conquistou a Sicília.

"Mas, em 1486, os comerciantes portugueses chegaram ao porto de Palermo trazendo frutas cítricas doces, chamadas laranjas", explica Basile. "Como eles queriam que as arancinus lembrassem o sabor mais gostoso desse novo tipo de laranja, os cidadãos de Palermo e das áreas em torno mudaram o nome para arancina. Essa mudança linguística, porém, nunca ocorreu no lado oriental da ilha".

A partir daquele momento, os dois litorais começaram a desenvolver dois tipos parecidos, embora diferentes, de arancini. "Em Palermo, eles mantiveram o formato original redondo e preservaram suas origens árabes adicionando açafrão ao arroz, enquanto os de Catânia criaram um formato de cone para representar o Monte Etna, o vulcão que fica na costa leste", diz Basile.

O amado lanche siciliano é alvo de um dilema linguístico há décadas  - Pera Comics/BBC - Pera Comics/BBC
O amado lanche siciliano é alvo de um dilema linguístico há décadas
Imagem: Pera Comics/BBC

Segundo o livro Pomodoro! - A History of the Tomato in Italy (A história do tomate na Itália, em tradução livre), do acadêmico David Gentilcore, o primeiro relato de um tomate na Itália foi registrado em 1548. Mas, de acordo com Basile, foi apenas na metade do século 19 que os dois lados da ilha começaram a acrescentar a polpa de tomate à receita original, que surgiu sob o domínio árabe na idade média. Isso aproximou as duas versões do lanche.

E, quando a Itália virou uma nação ao incorporar a ilha mediterrânea em 1861, o arancino e a arancina se tornaram um prato único, um representante da cozinha do sul da Itália enquanto manteve sua diferença de gênero na língua falada, explica Basile.

Isso não pareceu incomodar ninguém na época. Porém, segundo a revista italiana Internazionale, com o surgimento das redes sociais e as crescentes discussões sobre teoria de gênero e clareza linguística e as diferenças entre masculino e feminino, isso se tornou "a mãe de todas as brigas sicilianas", nas palavras de Festa.

A divisão foi tamanha que precisou de uma intervenção da Accademia della Crusca, a maior instituição de regulação da linguagem na Itália.

Em janeiro de 2016, a academia publicou um relatório especial sobre o debate arancino versus arancina, optando por uma solução politicamente correta. O relatório disse que ambas as versões estavam corretas, mas que a versão feminina está um pouco mais correta porque as frutas geralmente têm pronomes femininos na língua italiana.

Stefania Iannizzotto, a consultora linguística responsável pela pesquisa, disse que o instituto recebeu, e continua recebendo, muitas cartas e e-mails para resolver o debate. "Como a única siciliana trabalhando aqui, eu fui incumbida com essa missão, apesar de ter medo de não ser neutra o suficiente. Foi uma responsabilidade difícil", explicou ela.

Em Palermo e no oeste da Sicília, o salgado é conhecido como "arancina", no feminino, enquanto no leste e na cidade de Catania o nome masculino é utilizado, "arancino" - Boaz Rottem/Alamy/BBC - Boaz Rottem/Alamy/BBC
Em Palermo e no oeste da Sicília, o salgado é conhecido como "arancina", no feminino, enquanto no leste e na cidade de Catania o nome masculino é utilizado, "arancino"
Imagem: Boaz Rottem/Alamy/BBC

Iannizzotto é da região de Ragusa, a única área ao sudeste que usa o nome feminino, então escolher um lado significava ser ridicularizada ou censurada por seus familiares e amigos na Catânia, para onde ela se mudou após o ensino médio.

"Começou como uma piada interna, mas nas redes sociais virou uma guerra. Essa briga de gênero nunca vai terminar", disse Iannizzotto.

A intervenção da academia, porém, não encerrou o debate. Apenas o intensificou, na verdade. "A publicação recebeu muita atenção da mídia. Toda vez que eu lia minhas entrevistas publicadas no Facebook, eu achava comentários odiosos contra mim por tentar acabar com a discussão", diz a linguista.

No último maio, Iannizzotto foi convidada para falar no Festival de Comida de Rua de Catânia, onde, entre aulas de culinária e aperitivos grátis, ela achava que seu workshop sobre a questão arancino-arancina seria a parte mais chata do evento. "Estava chovendo e eu não esperava uma participação grande. Em vez disso, dezenas de pessoas apareceram, fazendo com que eu percebesse a seriedade do interesse das pessoas em aprender o uso dos termos corretos", diz ela.

Dizem que a forma de cone dos arancini de Catania é uma referência ao Monte Etna  - Antonio Violi/Alamy/BBC - Antonio Violi/Alamy/BBC
Dizem que a forma de cone dos arancini de Catania é uma referência ao Monte Etna
Imagem: Antonio Violi/Alamy/BBC

O alvoroço atual também afetou os negócios sicilianos servindo o prato aos locais e turistas. No centro histórico de Catânia, fregueses do bar Savia pediam 'arancina' no balcão.

O uso incomum do gênero feminino na 'terra do arancino' não é um erro cometido por forasteiros ingênuos, mas uma afirmação de locais confiantes. A famosa cafeteria, criada em 1897, começou a fazer as arancine em 1970. De acordo com Claudio Lombardo, o dono da quarta geração, seu avô seguiu a ideia de Palermo de que a arancina imita o formato das laranjas e, por isso, deve manter o pronome feminino.

"Até onde eu saiba, nós somos o único lugar na Catania que as chama de arancine. Ninguém jamais prestou atenção nisso, e jamais corrigiríamos nossos clientes ao usar o nome masculino", diz Lombardo. "Até que as pessoas começaram a postar a respeito nas redes sociais, e foi aí que o problema começou".

Lombardo relembra como começou a receber insultos, palavrões e até boicote e ameaças de morte quando alguns moradores ficaram sabendo sobre a linguagem 'inapropriada' da loja através do Facebook.

"Então, para evitar uma guerra, em 2017 decidimos mudar as placas usadas nas lojas para 'arancinu' [o termo siciliano original] e salvar empregos ao não fechar nosso negócio centenário", diz ele. No entanto, Lombardo explicou que ele jamais mudará sua cabeça sobre o gênero real do lanche, que "é feminino, sem dúvida, assim como todas as coisas belas o são".

Vários negócios na Sicília tentaram trazer uma sensação de paz ao introduzir nomes de gênero neutro - Stefania D'Ignoti/BBC - Stefania D'Ignoti/BBC
Vários negócios na Sicília tentaram trazer uma sensação de paz ao introduzir nomes de gênero neutro
Imagem: Stefania D'Ignoti/BBC

Há outras tentativas de trazer uma sensação de paz. Termos de gênero neutro, incluindo arancin* e arancin@, que evitam usar tanto a forma masculina quanto a feminina, promovem inclusão, aceitação e até uma mente aberta em termos sexuais nessa região majoritariamente conservadora, além de ajudar na antiga briga.

Andrea Graziano, criador da Fud Bottega Sicula, um restaurante de cozinha siciliana contemporânea, propôs uma trégua de vez em seus restaurantes em Palermo e Catânia em dezembro: um prato principal de 'arancinie' com dois arancinis e duas arancines com seus respectivos formatos. "Eu não me importo com o debate e nunca o levei a sério, mas queria propor minha solução provocativa para fazer as pessoas rirem com essa briga ridícula", diz Graziano.

Como a briga de gênero por trás do mais amado lanche da Sicília parece incomodar apenas os clientes locais, Lombardo decidiu focar na clientela turista, que está interessada apenas na experiência culinária e não com o termo linguístico correto.

"Enquanto os arancinu forem bons, não se distraia com conversas inúteis e apenas aprecie o sabor", diz ele.

Muito além do debate de gênero linguístico, esse lanche continuará a carregar uma mensagem calorosa e receptiva para ambos locais e visitantes.

Errata: este conteúdo foi atualizado
A reportagem original da BBC diz que o tomate chegou à Sicília, Itália, no século 15, mas realmente, pelo que encontramos no livro Pomodoro!: A History of the Tomato in Italy, da Columbia University Press, o primeiro relato de um tomate na Itália remete a 1548, no século 16. "The recorded history of the tomato in Italy begins on October 31, 1548, on a day when Cosimo de? Medici, the grand duke of Tuscany, was in Pisa along with his household. His house steward presented a basket to ?their excellencies? that had been sent to him." https://www.jstor.org/stable/10.7312/gent15206