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Machismo e suicídio: por que cozinhas de alta gastronomia são tão hostis?

A Band estreou no início de setembro a segunda temporada de "MasterChef - Profissionais". São 16 participantes ao todo, já com boa experiência no mercado, que irão concorrer ao prêmio de R$ 200 mil e uma viagem aos Emirados Árabes - Reprodução/TV Bandeirantes
A Band estreou no início de setembro a segunda temporada de "MasterChef - Profissionais". São 16 participantes ao todo, já com boa experiência no mercado, que irão concorrer ao prêmio de R$ 200 mil e uma viagem aos Emirados Árabes Imagem: Reprodução/TV Bandeirantes

Marcos Candido

do UOL, em São Paulo

20/09/2017 04h00

Autoritarismo, cobranças, comentários machistas e hierarquias. Caso você tenha assistido a algum reality show de culinária, como MasterChef e Hell’s Kitchen, já consegue imaginar que ‘gentileza’ não é bem o prato da casa em cozinhas profissionais. Pois saiba que existe, na história, uma explicação para o ambiente hostil da vida real que é representado na televisão.

Sentido!

A culinária profissional, como a conhecemos, surgiu na França entre os séculos 18 e 19. Já próximo do século 20, o chef francês Auguste Escoffier começou a usar boa parte dos conceitos já existentes para estabelecer mudanças na maneira como os pratos eram preparados.

Ex-militar, Escoffier elaborou o ‘sistema de brigada’, no qual há uma religiosa hierarquia para definir as funções do chef, a autoridade máxima, e de seus subalternos (do braço direito sous chef, passando por cozinheiros com habilidades específicas e funcionários da limpeza).

A personalidade autoritária do ex-marinheiro é tida por historiadores como um dos ingredientes para o atrito entre as “classes” gastronômicas até hoje - e seus traços e preceitos ecoam pelas escolas e cotidiano da gastronomia.

Mortes

Um dos exemplos deste legado é o trabalho sob alta pressão - sob horas consecutivas de esforço, ordens e até insultos. Apontado, inclusive, como um dos agravantes para o suicídio de ao menos dez grandes nomes da gastronomia na última década, contabilizando chefs estrelados a cozinheiros prestes a decolar na carreira.

A morte do suíço Benoît Violier, considerado um dos melhores chefs do mundo, chocou o mundo em 2016 e chamou a atenção para o alto desgaste psicológico para conquistar um negócio de sucesso. À época, acreditava-se que Benoît enfrentava problemas financeiros em seu premiado restaurante na cidade suíça de Crissier.

Para a doutora em Antropologia pela UNESP (Universidade Estadual Paulista) e pós-doutora pela UFG Talita Roim, os realities são ainda mais brandos do que a realidade. “Os programas retiram o trabalho braçal, as responsabilidades e trazem até certo fetiche à condição de chef - uma pessoa pode se formar e amanhã achar que já pode chefiar, o que pode ser bem frustrante”, explica.

Machismo

Mesmo que grandes chefs, como a renomada brasileira Helena Rizzo do Maní, evitem usar o termo “machismo” na cozinha, pode-se dizer que Escoffier e seus mestres antecessores não eram exatamente, assim, fãs de mulheres trabalhando em cozinhas profissionais.

Escoffier dizia que a culinária profissional era uma "arte elevada" exclusiva para homens. Para ele, mulheres deveriam preparar pratos mais “simplórios” para o marido e os filhos. Claro, em casa.

Um dos casos mais emblemáticos de machismo é o que envolveu Dayse Paparoto, participante campeã da primeira temporada do MasterChef Profissionais, em 2016, que recebeu apoio nas redes sociais após ter sofrido comentários machistas dos adversários derrotados. Mandaram até ela varrer o chão.

“Ao longo da história foi-se criando um discurso excludente de que a cozinha profissional era quente, pesada, e que mulher não aguentava pegar caixas e panelas”, explica a doutora em Ciência Social pela USP e professora em Antropologia do Alimento na Universidade Federal de Goiás Janine Collaço.

A professora Paula Feliciano, especializada em Cozinha Brasileira e Tecnologia em Gastronomia do Senac, diz que elas têm conquistado cada vez mais espaço e reconhecimento na cozinha profissional, mas que a realidade histórica ainda mantém as marcas do passado. “O próprio uniforme da cozinha profissional, que é um grande símbolo da profissão, é baseado em uniformes militares que, salvo poucas exceções, é uma atividade de contornos masculinos”, conclui.